Reabilitação no Piauí dá salto de qualidade
04/08/2006 - 00:11:32  
  
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Antônio Carlos Fernandes

Por Elza Muniz

Em entrevista ao Portal da Ceid, o diretor clínico da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), Antonio Carlos Fernandes, que esteve no Piauí fazendo a seleção dos profissionais de medicina que farão treinamento na sede da entidade, durante o mês de agosto, em São Paulo, faz uma análise sobre a reabilitação no país, sobre a parceria técnico  cientifica celebrada com a Coordenadoria para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Ceid) com o objetivo de selecionar e qualificar pessoas para atuarem em reabilitação física no estado, sobre a lei das cotas,  a missão da AACD e a evolução da reabilitação no país.

O setor de reabilitação no Piauí vive um momento histórico. Dia 07 uma equipe de 48 profissionais (médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, nutricionistas, fisiatra, psicólogo, arte-terapeuta, hidroterapeuta, assistente sociais, pedagogos) inicia uma qualificação na sede da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), em São Paulo. A entidade que esta semana completou 56 anos de existência é apontada por especialistas como referência em reabilitação no país.

O médico Antônio Carlos Fernandes acompanha há 23 anos o trabalho da AACD no país. Com pós-graduação em ortopedia pela UNESP, MBA na Fundação Getúlio Vargas (FGV) em Administração Hospitalar e Sistema de Saúde, ele é membro da Sociedade Brasileira de Ortopedia, Membro correspondente da Sociedade Uruguaia de Ortopedia e Traumatologia e presidente do Comitê Técnico-científico da Oritel (Organização Internacional dos Países que fazem o Teleton) e faz parte do corpo editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Ortopedia Pediátrica e da ACTA – Revista Ortopédica. Confira a entrevista:

Portal - A AACD está concluindo no Piauí uma fase dessa parceria tecnocientífica voltada para a seleção de profissionais que vão atuar na reabilitação de crianças deficientes. Que balanço o senhor faz desse processo seletivo?
Antonio Carlos Fernandes - Tivemos um grande apoio da Ceid. Esse trabalho foi feito com extrema transparência, não houve atropelos, fizemos um edital que especificava os requisitos dos candidatos a entrar no processo seletivo em cada área, e as pessoas que entraram participaram de análise de currículo, prova escrita, prova pratica e dinâmica de grupo. Foram selecionados os melhores profissionais. A instituição para que possa funcionar de modo transparente, ela precisa nascer transparente, e é o que eu vejo no Centro de Reabilitação do Piauí. Ele está nascendo de forma transparente. Após o processo seletivo e o treinamento, a instituição vai continuar oferecendo, gratuitamente, o suporte técnico e cientifico para que o centro \\\\\\\'ande com as próprias pernas\\\\\\\', mas sempre com o apoio de uma instituição mais experiente e que possa ajudar nessa importante missão social, que é o tratamento da pessoa com deficiência.
 
Portal - É uma espécie de auditoria?
Fernandes - Acho que a auditoria sempre vai existir porque é a maneira que temos de provar, do ponto de vista legal, que tudo funciona de forma transparente. Do ponto de vista técnico, eu diria que vamos fazer uma supervisão. Vamos continuar dando todo esse suporte para manter o centro sempre numa condição de referência em qualidade, em qualificação do profissional, para que todos possam ganhar com isso.

Portal - A seleção que a AACD encerra agora é resultado de uma parceria tecnocientifica. O que motivou a instituição a realizar essa parceria?
Fernandes - No decorrer dos últimos nove anos, com o advento do Programa Teleton, a AACD enfrentou um crescimento muito grande. Em 1999, atendemos cerca de 970 pessoas por dia; em 2006, foram 5.100 pacientes atendidos por dia. Mesmo com todo esse crescimento, o número de pacientes, principalmente crianças que nos procuram para atendimento, faz com que as nossas filas de espera sejam cada vez maiores, e a instituição tem seu limite de autocrescimento. Então, baseado na conversa que tivemos com a direção da Ceid, percebemos que se trata de uma secretaria extremamente séria, com objetivos reais claros e bem definidos, e optamos por auxiliar a Ceid e nos propusemos a transferir, gratuitamente, nossa experiência adquirida ao longo desses 56 anos através de uma parceria tecnocientifica.

Portal - O Piauí é o primeiro Estado onde a AACD realiza esse tipo de parceria?
Fernandes - Esse tipo de treinamento já ocorreu em outros Estados. Ocasionalmente, outros centros de reabilitação tanto do Brasil como também de paises da América do Sul nos pedem auxílio para treinamento em determinadas áreas, mas de forma mais pontual, como treinamento em lesão medular, em mielomeningocele, mas não de forma global, como está sendo feito nesse momento.

Portal - Inclusive a lesão medular é uma das especialidades da AACD?
Fernandes – Existem doenças em que há necessidade que um grupo multiprofissional atue de forma conjunta,  como a paralisia cerebral, a lesão medular e a mielomeningocele. São doenças que exigem um grupo de médicos de varias especialidades que efetivamente falem a mesma língua e tenham uma filosofia própria de tratamento e experiência, além do conhecimento prévio para oferecer ao paciente um tratamento uniforme.

Portal - Que tipo de treinamento os 48 profissionais selecionados vão receber na sede da AACD em São Paulo?
Fernandes - Selecionamos profissionais treinados e experientes em suas respectivas profissões. O que falta é um treinamento de como trabalhar em equipe e um aprofundamento maior nas patologias, como paralisia cerebral, lesão medular, malformações congênitas e amputações. Eles vão ter contato com essas clínicas, participar de modo intensivo dos atendimentos e das reuniões em grupo e também vão receber aulas teóricas especificas para esses assuntos sobre o funcionamento de um centro de reabilitação.

Portal - A estrutura logística e administrativa do Centro Integrado de Reabilitação do Piauí será a mesma da AACD?
Fernandes - Esse é o objetivo. Temos uma maneira de funcionamento tanto da unidade central como de nossas novas unidades. Esse tipo de parceria que está sendo feito com o Estado do Piauí mostra que esse é um caminho vitorioso e que já deu certo em vários locais e vamos minorar o máximo os problemas e adversidades.

Portal - E a fila de espera na AACD no Brasil?
Fernandes - Para se ter uma idéia, temos cerca de 35 mil pessoas aguardando uma consulta. É logo que a maioria dessas consultas são pré-agendadas, entretanto esse número é gigantesco. Temos cerca de 3.800 pacientes aguardando cirurgia somente na unidade central da AACD. Isso mostra que o trabalho que realizamos é sério e reconhecido, mas mostra também a carência do nosso País de centros de tratamento e reabilitação, por isso essa procura é tão grande.

Portal – Esta semana a AACD completou esta semana 56 anos de existência. Ao longo desse período, o que mudou na forma de enfrentar a reabilitação tanto na AACD como no País?
Fernandes - Tivemos grandes avanços. Um dado histórico importante é que a história da reabilitação teve grandes impulsos no mundo pós-Segunda Guerra Mundial, quando existiam batalhões de pessoas inválidas. Eram os inválidos pela guerra, os amputados, os paraplégicos, os tetraplégicos, pessoas com traumatismo craniano. E existiam também os batalhões de crianças e adultos sobreviventes com doenças que não tinham nem tratamento, nem cura, como paralisia cerebral e paralisia infantil. Essas pessoas não tinham nenhuma expectativa de tratamento, nem de reintegração na sociedade. Então, no mundo pós-guerra, tanto nos Estados Unidos como na Europa, passaram a investir, tanto o governo como as instituições privadas, em novas tecnologias e em novos tipos de tratamento para fazer com que essas pessoas pudessem voltar a fazer parte da sociedade.

No Brasil, alguns centros começaram a se formar na década de 1950 com esse objetivo, e a AACD foi um deles. Seu fundador, o doutor Renato da Costa Bonfim, um ortopedista famoso, conseguiu motivar outros médicos, trouxe profissionais de outros países, pois aqui não existiam fisioterapeutas e enfermeiras especializadas em reabilitação. Ele montou uma equipe com muita força de vontade, liderança e espírito de luta. Sempre indo atrás de verbas nos governos, nos empresários, e isso fez com que a AACD crescesse. A AACD começou a funcionar em 50 numa casinha, em um bairro de São Paulo. Nos anos 60 ela recebeu um terreno da Prefeitura, próximo ao Ibirapuera, e lá fez sua sede central, nos anos 70. Fez um prédio da oficina ortopédica. Nos anos 90, fez um hospital. E depois, com o primeiro Teleton, em 1998, passou a se expandir para outras cidades. Hoje, estamos em Recife (PE), Porto Alegre (RS), Uberlândia (MG), Osasco (SP), Mooca (SP) e Nova Iguaçu (RJ). Muitas coisas mudaram, o tratamento evoluiu, o respeito à pessoa portadora de deficiência mudou. Isso agora é uma constante. Em São Paulo, por exemplo, existem vans (veículos) adaptadas, cedidas pela Prefeitura, para que as pessoas possam se locomover na cidade. Existem adaptações para prédios públicos e nos shoppings centers.

Portal - Podemos afirmar que o País mudou a forma de enfrentar a deficiência?
Fernandes - A forma de encarar mudou, embora de forma muito lenta e tímida. Por isso, vamos continuar militando para que continue mudando e possamos levar isso para todos os lugares do nosso País.  Por exemplo, se você andar aqui em Teresina, por exemplo, encontramos poucas pessoas andando de cadeiras de rodas no centro, nos shoppings, mas será que não há pessoas com deficiência? Onde elas estão? Estão dentro de suas casas. Como não tiveram tratamento, não tiveram acesso a escola e agora conseguem  não conseguem rabalho, não conseguem ter uma vida sociável. Resultado: a vida se torna muito indigna para essas pessoas.
 
Hoje, no País, temos uma lei chamada Lei das Cotas, que favorece a entrada do deficiente físico no mercado de trabalho. Uma empresa que tem 100 funcionários deve ter 2% de seus funcionários com algum tipo de deficiência. Quando a empresa tem a partir de mil funcionários, esse número passa a 5%. Na AACD, por exemplo, temos cerca de 1.800 funcionários, e por lei, temos de ter pelo menos 5% dos funcionários de pessoas com deficiência. No final do túnel existe um acesso ao trabalho que até favorece muito em relação as pessoas com deficiência, entretanto continuamos a não disponibilizar tratamento e escola para as crianças. Então não adianta você pegar um adulto e oferecer emprego se ele não teve nem tratamento nem escola, essa é uma situação complexa de nosso País que temos que mudar. Esse é um dos objetivos reais de estarmos aqui ajudando a Ceid no Centro de reabilitação.

Portal - A ACCD foi criada por causa da poliomielite, erradicada em 1989. Hoje, no País, qual a maior causa de deficiência e o que pode ser feito para garantir a prevenção?
Fernandes – A principal doença é a paralisia cerebral. Em nossas estatísticas da AACD, cerca de 50% de nossos pacientes têm paralisia cerebral. A paralisia é causada por uma doença que afeta o cérebro durante a gravidez, durante o nascimento ou logo após o nascimento. Temos de combater as doenças, os males que podem afetar o cérebro de uma criança nessas condições. Uma coisa importantíssima: o pré-natal, a necessidade de orientar as gestantes no sentido de fazer o pré-natal, ter uma alimentação correta, uma dieta saudável longe do álcool e do fumo.
Outra coisa muito importante são as condições de nascimento. Em um congresso de paralisia cerebral, em 1988, foi acordado que houvesse um pediatra na sala de parto, pois, quando uma mulher vai dar à luz, todo mundo se preocupa com ela, que recebe o médico obstetra e a enfermeira, mas quem se preocupa com o bebê? Por isso foi aceita essa condição. Essa imposição foi aceita pela Sociedade de Pediatria e encampada como norma pelo SUS (Sistema Único de Saúde), mas o que eu vejo é que há locais que não têm nem hospital, muito menos um estabelecimento para receber a criança. Continuamos como celeiro de paralíticos cerebrais porque nem todas as mulheres têm acesso ao pré-natal, nem todas as crianças nascem em maternidades e hospitais, nem sempre as crianças têm alimentação adequada.

Portal - A AACD é uma instituição sem fins lucrativos. Como ela é mantida?
Fernandes – A instituição é particular filantrópica. Ela não tem dono. Seus dirigentes o Conselho Consultivo é formada por pessoas voluntárias. São pessoas que trabalham, têm muita responsabilidade e não têm salário. O Teleton contribui com apenas 15% das nossas necessidades. Então, o que fazemos para sobreviver? Temos uma fábrica de aparelhos ortopédicos, onde nós vendemos a preços competitivos, mas é uma fonte de renda que não podemos dispor. Algumas pessoas perguntam porque vocês não doam os aparelhos porque nós não temos condições, se tivéssemos assim faríamos. Alguns tipos de convênios com órgãos públicos tanto em âmbito municipal como estadual e federal que correspondem mais ou menos a 15% do que necessitamos; temos doação de milhares de brasileiros que durante o ano, são os mantenedores, ou pessoas que fazem contribuições mensais, semestrais ou anuais de acordo com suas possibilidades. Temos o apoio de algumas empresas de grande porte algumas doam materiais, outras doam produtos outras.

Em São Paulo, temos um Hospital (Abreu Sodré) onde uma parte desse hospital é destinada ao tratamento de pessoas não-deficientes. Temos médicos credenciados na maior parte ortopedistas que conduzem seus pacientes privados  para a instituição porque esse é um hospital central com baixíssimo nível de infecção hospitalar. O lucro dessas cirurgias vai integralmente para o tratamento de nossos deficientes, que nada pagam pelo tratamento cirúrgico e o SUS contribui apenas com aproximadamente 10% das contas hospitalares. E é assim que procuramos sobreviver com muita dificuldade, porém carregando a fama de que somos ricos e nós não somos. Por esse motivo nós queremos passar nossa experiência adquirida nesses 56 anos para instituições sérias, como a Ceid, que também abraçam a causa do tratamento da pessoa com deficiência, e é por isso que estamos aqui.

A missão da AACD é atender e tratar a pessoa portadora de deficiência física. Mas percebo que para ter um tratamento completo é preciso base cientifica, então para criar esses tratamentos é preciso a experiência da literatura, mas temos que freqüentar congressos, simpósios e também que mostrar a nossa experiência adquirida também através de trabalhos científicos. Temos motivado nossos profissionais a participarem desse tipo de atividade, ou seja, apesar de não ser uma instituição voltada ao ensino nós procuramos participar de congresso, simpósios.... Temos um convênio firmado com a Universidade Federal de São Paulo, que já está no terceiro ano, lato sensu (sentido amplo) e um curso reconhecido pelo MEC (Ministério da Educação) que capacita os profissionais de saúde para atuarem de modo correto em um centro de reabilitação. São 500 horas de um trabalho duro, de aulas teóricas e práticas em nossos atendimentos. Temos módulos puramente administrativos e módulos mais clínicos. Esse curso é reconhecido, tem um ano de duração,são 500 horas de um trabalho duro entre o trabalho teórico e  prático.